(texto a ser adaptado posteriormente para o tema Inteligência Redencional)
A
Música na Igreja Como Ferramenta da Palavra
(Palestra
ministrada na IP Santo Amaro, por ocasião do Congresso de Música – Maio de
2013)
Introdução
Em
nossa reflexão desta tarde não pretendo abordar os aspectos mais discutidos
sobre a questão musical na Igreja. Quero fazer côro como Maestro Parcival
Módolo que afirma que o nosso problema da atual discussão sobre o tema é que
está enfatizando sempre o tema: qual música? Quando deveria se ocupar em
perguntar: para que música?
Abordaremos
o tema para nossa reflexão de um ponto de vista do propósito da música na
Igreja, em particular no culto de adoração, dentro de uma perspectiva protestante
reformada, que pontua sobre o papel central da Palavra de Deus no contexto da
adoração.
Destarte,
a música será abordada como uma ferramenta da Palavra e o faremos,
principalmente, a partir da forma como a mesma deve ser utilizada dentro de um
processo litúrgico, sem ferir os valores fundamentais do princípio regulador do culto
reformado, as Escrituras.
O Papel Didático do Culto Protestante
Diferentemente
do padrão católico de liturgia, que privilegia a impressão e expressão sensoriais,
o culto protestante evidencia a a expressão e impressão racionais, antes de
todo o trajeto sensorial, sem descartá-lo, entretanto, tornando-o resultado e
não caminho.
Um
dos princípios norteadores da Reforma Protestante foi a adoção do “Sola
Scriptura” como fundamento de toda a autoridade na Igreja. Enquanto que no
Catolicismo Romano a autoridade se acha diluída entre vários elementos
(Escritura, magistério da Igreja, tradição, palavra papal), entre os
protestantes nada pode usurpar o lugar único das Escrituras como “única regra
de fé e prática”.
Este
princípio conduziu o protestantismo a um modelo cúltico centrado na prédica da
Palavra. A autoridade não está na instituição, mas na verdade proclamada com
fidelidade. Podemos dizer que o culto protestante é, essencialmente, a busca de
Deus por meio do ouvir e proclamar da sua Palavra.
O
elemento cognitivo racional é, portanto, preponderante na tradição cúltica
protestante. Há dois movimentos implícitos aqui: a) o culto a Deus só pode ser
adequadamente realizado se tivermos uma compreensão depurada da revelação
bíblica; b) o culto a Deus é, acima de tudo, o momento onde o encontro com Deus
proporciona o conhecimento mais apurado dele, através da pregação da Palavra.
Calvino,
comentando o Salmo 50, assim afirmou: “o
culto que não tem uma distinta referência à Palavra outra coisa não é senão uma
corrupção das coisas sacras” (CALVINO, Livro dos Salmos Vol2, pág.403). .
O
culto protestante, com sua centralidade na Palavra de Deus, prestava-se ao
papel didático de apresentar a verdade da Palavra para o crescimento do
relacionamento centrado em Deus, por meio de um mais acurado conhecimento das
Escrituras.
Portanto,
o elemento originador e regulador do culto, bem como o a finalidade do mesmo é
Deus por meio de sua Palavra. Ela é o veículo de abordagem e ensino do culto
protestante. Por ela nos achegamos a Deus, segundo a sua vontade e prescrição e
ela anuncia as verdades de Deus que promovem a nossa fé e comunhão com Ele.
A Música Como Ferramenta Didática da Palavra no
Culto
Partindo
do princípio de que a Palavra figura no centro do processo litúrgico
protestante, todo o trabalho dialogal de “expressão” e “impressão” é conduzido
por ela. Assim, a Palavra é o aio que conduz o adorador a Deus e Deus ao
adorador.
O Caráter Dialogal do Culto
Por
caráter dialogal do culto, entendemos aquela ideia de que, no momento do culto,
Deus se encontra com o seu povo e lhe fala ao coração e este, por sua vez, lhe
responde.
Von
Allmen definia como “palavra anagnóstica” (sem o propósito fundamental do
ensino, como a prédica), toda a circunstância litúrgica em que a palavra era
lida para a condução do povo de Deus, e este, com seus gestos, orações e
cânticos, respondia como num verdadeiro diálogo entre Deus e seu povo.
O
Salmo 99 pode exemplificar este processo: o salmista, nos versos 1 a 3, faz o
seguinte movimento: anuncia a glória do
Senhor (vs1 e 2); conclama a resposta do povo (vs3) e o povo responde (VS 4);
novamente conclama a resposta (vs5); cita o contexto da Palavra (vs6 e 7); o
povo responde (vs8) e novamente conclama a resposta (VS 9).
Então,
dentro deste movimento dialogal que inicialmente veremos o papel didático da
música como serva da Palavra.
A Música e o diálogo
liturgico
Dentro
desta característica dialogal do culto, a música pode exercer papel um
fundamental. Afinal, é música é um invólucro especial para servir tanto na
impressão, que é o anúncio do que Deus diz, quanto na expressão que é a
resposta da igreja.
Imaginemos
uma ordem litúrgica que conclamasse o povo à adoração com a leitura do Salmo
29.1e 2. A música que viesse a seguir poderia ser uma sequencia desta palavra,
com por exemplo: “Vinde ó remidos, filhos de Deus, cantai louvores que alcancem
os céus”, buscando imprimir um senso de busca, reforçando a leitura, ou uma
música de resposta ao chamado como expressão da submissão da Igreja ao chamado:
“Eis-nos ó pastor divino, todos juntos num lugar”.
Evidentemente,
o diálogo cúltico não se resume aos cânticos entoados. É plenamente possível um
culto com a mesma característica sem música alguma. Contudo, devemos considerar
que este processo, quando acompanhada pela arte musical, se potencializa em termos
de envolvimento pessoal e no propósito de aprofundamento do sentimento e das
convicções propostos.
A Música e a Valorização do Texto
Sobre
este assunto, recomendo o excelente texto do Maestro Parcival Módolo: “Música:
Explicatio Textus, predicatio Sonora” (Fides Reformata, Vol. 1, 1996).
Em
resumo, o princípio da Reforma é que a música era serva da Palavra, no sentido
de que trabalha artisticamente para ressaltar a palavra, tanto o entendimento
da mesma, como preparar o povo para tal. Até mesmo a música instrumental no
culto, deve trabalhar com esta meta: conduzir o homem à Deus, por meio da
Palavra, ou seja, conduzir o coração humano para um estado mental de percepção
da palavra.
Contudo,
apesar do material ser rico na apresentação deste ponto. Quero completar a
ideia de valorização do texto, ainda por outra vertente, uma mais pragmática
musical.
Uma outra
maneira da música servir à Palavra tem a ver com a sua própria composição. Como
não sou músico, dou aqui meu pitaco, mas
me permito a correções de todos vocês.
A
formação métrica/numérica da música pode, e muito, auxiliar na fixação de
conceitos, ou ao menos, na ênfase de alguns deles. Por exemplo:
Uma
música que fale sobre a ressurreição, é
bom que tenha uma elemento que ressalte a ideia de elevação, como por
exemplo o estribilho: “Ressurgiu...
ressurgiu... aleluia, ressurgiu!”. Por outro lado, uma música que carregue
o sentimento de culpa, próprio do homem que reconhece os seus pecados, deve
carregar o tom triste, pesaroso como do hino de Lutero: “do fundo de um abismo, ó Deus... eu faço ouvir meu grito... atenta lá
dos altos céus... na dor de um pobre aflito”. Veja que a construção musical
favorece e fortalece a mensagem anunciada e a resposta pretendida à Palavra.
Uma
outra maneira ainda da composição de uma música favorecer a ênfase e fixação de
conceitos é o seu contínuo intercalar de notas agudas e graves. Um exemplo
interessante é o hino: “Ao DEUS, de
ABRÃO, LOUVAI! Dos altos CÉUS, SENHOR!” Ou ainda: “vamos NÓS trabalhar somos
SERVOS de Deus”.
Podemos
dizer que um dos referenciais bíblicos para esta abordagem é justamente alguns
sinais que aparecem no texto dos salmos que podem indicar a ideia de reforço,
como a presença do SELAH em algumas estrofes dos salmos, ou ainda a necessidade
do uso de um determinado tipo de voz ou instrumento no canto do Salmo. (Exemplo
de Salmo 3; Salmo 46, Salmo 53).
Evidentemente,
o trabalho técnico do músico compositor deve estar sensivelmente ligado ao
trabalho dos exegetas da Palavra, no sentido de que sua música reforce uma
ênfase pretendida pela Palavra de Deus.
Desta
maneira, a composição pode, em muito, favorecer a valorização do texto bíblico
e a impressão de conceitos fundamentais.
A Música e a Memória e Identidade Teológica da
Igreja
Salmo
78. 3 e 4 – O que ouvimos e aprendemos,
o que nos contaram nossos pais, não o encobriremos a seus filhos; contaremos à
vindoura geração os louvores do Senhor, e o seu poder, e as maravilhas que fez”
Outra
maneira de destacar o papel didático da música é a capacidade que ela tem de
oferecer impressões na memória do ser humano.
Farto
material de cunho psicológico já existe para trabalhar tecnicamente sobre este
poder da música e as áreas da mente que ela é capaz de exercitar e incitar.
A
memória teológica da Igreja tem na música um dos seus principais instrumentos. É
verdade, que tanto para bem, quanto para mal. Pois, muitas vezes, conceitos
teológicos errôneos e até textos bíblicos são equivocadamente ensinados e se
perpetuam no sei da Igreja.
As
cantilenas e cantochões serviam formidavelmente para favorecer a memorização de
longos textos bíblicos. O cântico de passagens bíblicas servem desta forma
ainda hoje. Da mesma forma, a propagação de doutrinas e princípios éticos são
também favorecidos.
A
tradição teológica pode ser representada em termos de nossas músicas, os quais
também servem como fatores de fortalecimento de uma identidade.
O
Dr. Antônio Gouvêa Mendonça, no seu livro “Celeste Porvir” dá muitos exemplos
de como a hinódia protestante fora instrumento particular de transmissão de sua
tradição teológica e de seus referenciais doutrinários no processo de
evangelização da América Latina.
A
transmissão das músicas através das gerações, forma um elo afetivo de unidade e
identidade de uma tradição religiosa. Imagine, dentre os crentes presbiterianos
independentes o que significa o canto de “Pendão Real” ou para os lutenanos
cantar “Castelo Forte”.
Nossa
hinódia tem muito a ver com nossa identidade e memória teológica. A música pode
servir à Igreja também como elemento de transmissão de valores, princípios e teologia.
A Música e a Horizontalidade da Fé
Nem
toda música cristã tem um propósito litúrgico. Assim, também tínhamos em
Israel, músicas de cunho religioso, como vários dos salmos, que não tinham uma
proposta litúrgica. Os cânticos de romagem (Salmo 133), por exemplo, serviam
primordialmente para embalar a jornada de fé que os israelitas faziam para o
templo, vindo das mais diversas partes da terra.
Estes
cânticos celebravam Deus de uma maneira particular nas rodas de amizade e
muitas vezes eram entoados para alegrar festas. O tema central é sempre Deus,
sua bondade e amor para com o seu povo. Cantavam a proteção do Senhor, a
unidade do povo de Deus e, a esperança que tinham no Altíssimo.
Acredito
que a falta de momentos de horizontalidade da fé, tenha trazido para o culto do
Senhor alguns hábitos litúrgicos que são estranhos à fé reformada, inclusive a
confusão que fazemos no uso da música que se desprende do princípio da teocentricidade
do culto.
Canto Congregacional, Coral, Conjuntos e Solos
Outro
ponto de equilíbrio que precisamos trabalhar dentro do conceito dialogal e
cristocêntrico do culto, regulado pela Palavra é quanto a quem executa a música
na Igreja.
A
Bíblia não parece estabelecer nenhum padrão único. Acredito que o canto
congregacional deva ser bastante estimulado no culto. Uma vez que, como
protestantes, prezamos pelo princípio do sacerdócio de todos os santos, limitar
a ministração dos cânticos ou mesmo das orações em apenas alguns membros pode
gerar alguma descaracterização deste princípio.
Mas,
o que deveria regular a participação de todos estes elementos? Bem, a música é
serva da Palavra, primeiramente, a melhor expressão ou impressão decorrente do
texto bíblico, lido anagnósticamente ou para a prédica.
Daí
a ideia de que a aproximação entre os pastor e todos os outros partícipes da
construção litúrgica é fundamental. O repertório da Igreja não pode ser
desconhecido de todas estas pessoas e, mesmo quando o pastor não conhece todo o
repertório dos diversos grupos, estes devem conhecer trabalho litúrgico com
tempo suficiente para um arranjo apropriado das músicas que serão dirigidas.
A
figura de um líder de música ou diretor, regente, ministro, como queiram
denominar, que tenha sensibilidade para a questão cristocêntrica e dialogal do
culto pode favorecer bastante a realização de uma liturgia conduzida pela
Palavra.
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